Acid Lake

Pestanejei várias vezes quando abri os olhos e não consegui ver nada nítido. Mesmo que me tentasse lembrar de alguma coisa do que se tinha passado, não o conseguia fazer. Eu estava só a passear até às ruínas, o meu sítio favorito para pensar, quando apaguei. Levantei a cabeça, percebendo que havia qualquer coisa pastosa a descer-me pela testa e pelo nariz.
Detesto a minha vida desde que cheguei a este sítio. Não sabia o que é que era pior, ter morrido naquele naufrágio ou estar a viver o que estava a viver. - O que é que estás a fazer? - perguntei sabendo perfeitamente que não me percebia. Reconhecia a cara daquele homem muito bem e eu só tinha ensinado a minha língua a pessoas que gostavam de mim ou, que pelo menos, se aproximavam de mim sem me ameaçar. Remexi-me mas estava preso por uma corda e digamos que os meus movimentos não eram muitos. - Deixa-me - gritei tentando perceber onde é que estava.

Tinha-me decidido afastar de toda a gente, farta daquela sensação de ter todos a olhar para mim fixamente. Não era uma sensação, era a realidade, o facto de eu ser filha do líder da tribo e consequentemente a próxima a liderar o nosso povo fazia com que os olhares se mantivessem todos em mim cheios de expectativas e de desejos. Às vezes essa atenção era interessante, mas a maior parte das vezes nem por isso. E por isso tinha acabado por trepar por uma árvore onde sabia que quase ninguém me podia seguir e tinha ficado a afiar a minha espada. Tinha sido pelo facto de me encontrar numa zona mais afastada e num local mais alto que tinha sido capaz de ver o Adam a ser levado para fora do acampamento. Guardei a espada, desci da árvore e fiz aquilo que sabia melhor, segui a minha presa.

Eu não conhecia aquela zona da ilha por uma razão: era perigoso. Bem, o lago em si era perigoso mas, mesmo assim, evitava estar por aquelas zonas. Aquela tribo era estranha, nunca sabia o que é que se poderia fazer. Havia vários pessoas contra a minha estadia ali, mas já tinha passado demasiados meses para agora estarem a tentar matar-me, mais valia terem-no feito antes, certo? Se eu ao menos conseguisse dizer uma frase naquela língua estranha deles, podia perguntar-lhe o porquê, mas nem isso sabia perguntar. Cerrei o maxilar, tentando soltar um braço daquela corda fina e que me magoava mais que as normais e, por isso mesmo, desisti.

Caminhei silênciosamente, seguindo os dois sem que qualquer um deles desse pela minha presença e não foi preciso muito para perceber para onde é que nos estávamos a dirigir. Toda a gente conhecia aquela zona mas ninguém se atrevia a aproximar demasiado da mesma, acidentes aconteciam e haviam muitas mortes horríveis mas aquele lago era sem dúvida uma das piores.
Assim que pararam, o meu olhar absorveu todos os pormenores daquela situação, a corda que prendia o Adam e o sangue que lhe escorria pela cara.
Não percebia o porquê do Arraskar ter decidido agora trazer o Adam para aqui, não fazia qualquer sentido. Muitos tinham votado contra à entrada dele na tribo quando o tínhamos encontrado na praia mas depois de decidido sabiam que se lhe tocassem teriam de se haver comigo. E tinham passado meses, porquê matá-lo agora? O que é que tinha mudado?
- O que é que estás a fazer? - perguntei tirando a espada novamente para fora e apontando a mesma ao pescoço do Arraskar - Ele está sob a minha proteção.

Tínhamos parado. Não conseguia ver se estávamos perto do lago ou não, mas estava cheio de medo, acho que nunca tinha tido tanto, mesmo quando percebi que o barco onde estávamos ia naufragar e que podia morrer naquele oceano. Ele podia matar-me de outra maneira, tinha mesmo que tentar atirar-me para aquela água que... eu nem sabia o que é que aquilo fazia na verdade, só me tinham dito para ficar fora desta zona e eu ficava. Só depois me tinham contado que chegar ali era a pior morte que as pessoas podiam ter. Mordi o lábio inferior, não valia a pena implorar, ele não me percebia e mesmo que o fizesse, não ia voltar atrás. Uma característica comum nesta tribo era que eram todos teimosos e decididos.
Senti o meu coração parar quando ouvi outra voz. Podia não perceber nada do que ela estava a dizer, mas sabia a quem pertencia. - Freya - chamei esperneando para a tentar ver, mas ela parecia estar do lado ao posto que eu. Eu só esperava que isto não fosse planeado e eles estivessem os dois combinados para me mandar à água.

Ele não se mexeu assim que aproximei a espada à sua pele mas aquele ar determinado não desapareceu do seu rosto. Felizmente eu sabia que ele não ia fazer nada contra a minha palavra agora que eu tinha descoberto e interrompido o seu plano.
- Peço desculpa. - respondeu a sua voz forte sem me olhar nos olhos - Pensava que o rapaz já não te dizia respeito.
Juntei as sobrancelhas sem perceber o que é que ele queria dizer com aquilo mas guardei novamente a espada - Saí. - ele assentiu com a cabeça e afastou-se de volta ao acampamento. Às vezes era bom ser a filha do líder e a próxima, fazia com que me respeitassem. Se bem que eu era boa o suficiente para levar a minha avante através da luta.
Agachei-me atrás do Adam e tirei a faca do cinto para lhe cortar as amarras que o prendiam - Espero que saibas a sorte que tiveste. - disse na língua que ele conhecia e que o tinha ouvido a ensinar a outros e mesmo a mim. Ainda não era muito boa a fala-la, fazia-o com um sotaque estranho e havia algumas palavras que não sabia dizer mas era o suficiente para nos compreendermos desde que o tinha encontrado e feito com que fosse aceite na minha tribo.

Acho que só fiquei mais calmo quando percebi que caí no chão e não na água. Pela forma como os dois se entreolhavam consegui perceber que ela não estava aliada a nada, e que na verdade, me estava a salvar, de novo. Revirei os olhos para mim próprio, deixando a minha cabeça cair no chão cheio de pedras. Como não me conseguia mexer, apenas fiquei a olhar para o homem e a fixa-lo na minha mente para não voltar a aproximar-me dele. Ele falava com Freya com respeito, por causa dela ser filha do líder, só podia, mas não deixava de querer matar-me. Não queria acreditar que ia voltar a ter medo de que me matassem enquanto dormia. - Eu não tive culpa - resmunguei quando me senti mais livre levando de imediato a mão à cabeça, que me doía. - Obrigado - agradeci.

Meti-me direita e guardei a faca enquanto olhava para o Adam que levava a mão à cabeça - Precisas de limpar isso. - apontei com o queixo em direção à ferida dele - De nada. - disse na minha própria língua - Anda. - sabia que devia fazer mais mas já lhe tinha salvo a vida, já era mais do que muita gente faria por ele. Virei costas e comecei a andar, sem olhar por cima do meu ombro para ter a certeza que ele me seguia, ele tinha de o fazer.

Agarrei na parte debaixo da minha camisola e limpei o sangue que já estava a chegar ao nariz. Olhei-a meio de lado quando começou a andar, mas lá tive que fazer o mesmo, afagando os meus braços que pareciam estar ainda apertados por causa da corda. Fui atrás dela apenas porque sabia que era o melhor, se ele voltasse e não estivesse com ela, ia ser atirado para o lago sem dúvida. - Porque é que achas que ele tentou matar-me? - perguntei de forma calma para ver se ela me percebia. Ela pouco falava, mas eu falava demais, e também usava gestos que a ajudavam a perceber-me, ou pelo menos, acho que ajudavam.

Não foi preciso olhar para trás para saber que ele me tinha começado a seguir, bastava ouvir os seus passos. Olhei por cima do ombro ao voltar a ouvi-lo falar e abanei a cabeça - Não sei. - respondi sendo sincera - Ele pensava que já não estavas comigo. - o que era muito estranho porque nada tinha sido dito em contrário ao que se tinha decidido na altura da sua chegada à ilha.

Mordi o lábio inferior quando ela disse que não sabia. Eles estiveram tanto tempo a falar que acho que ele tinha que lhe ter dito alguma coisa, pelo menos, foi o que pareceu - Ele pensava que já não estava contigo? - arregalei os olhos e apressei o passo para estar ao seu lado, não conseguindo evitar um sorriso que me apareceu no rosto. Ela podia não perceber, mas ela dizer aquilo, daquela maneira, até que soava bem, mas não como ela queria. - Eu acho que ele está a mentir - disse. Eu não devia ser assim, acusa-los e dizer-lhe o que é que achava dos outros membros da tribo, mas não conseguia evitar e não me ia desculpar por isso.

Assenti com a cabeça quando ele repetiu o que eu tinha dito mas em forma de pergunta. Continuei a andar em passo rápido para que nos afastássemos do lago que eu não confiava e soubesse que não estávamos mais em perigo - Se mentiu vai pagar. - as nossas leis eram bastante explícitas e eram para cumprir, depois de averiguar o que se tinha passado o castigo por desrespeitar uma ordem direta do líder e tocar num protegido meu, seria cumprido - A tua cabeça? - perguntei olhando-o pelo canto do olho.

Arregalei os olhos com a sua resposta, já devia estar habituado, mas era complicado quando eu sabia o que aquelas palavras significavam. Eu não era nenhum medriconço, quer dizer, já tinha sido, mas agora já não era, mas mesmo assim, não queria nada que alguém morresse ou fosse expulso por minha causa, isso só ia fazer com que as pessoas me odiassem mais do que já odiavam. - Está bem - respondi face à sua pergunta voltando a tocar na zona em que tinha levado a pancada - não doi muito. - menti com todos os dentes que tinha.