Cabanas

Foi impossível não soltar uma gargalhada - eu sei que não têm, vocês não se riem com nada - encolhi os ombros. Eu às vezes até tinha medo de me rir, eles deviam pensar que eu era tolinho. Segui os seus movimentos, deitando-me calmamente e só quando ouvi a sua pergunta é que me apercebi que não sabia o que queria - eu não sei - murmurei - eu quero voltar para casa - admiti - mas se não houver chances de isso acontecer... se não conseguirem encontrar quem quer que lá esteja - abanei a cabeça e juntei as sobrancelhas, tentando perceber - eu não sei o que fazer.

-Há coisas mais importantes do que isso. - comecei a retirar todas as minhas armas enquanto esperava pela sua resposta à minha pergunta e pousei tudo no chão à minha frente de modo a estar próximo caso precisasse delas a qualquer momento - Eles são como tu. Tens de ficar com eles. - disse assentindo com a cabeça e levantando-me da cama para ir até ao recipiente que tinha a água e o pano e limpar a minha cara para tirar a sujidade e a tinta que tinha na mesma.

Abanei a cabeça, contrariando-a - não, se não houver um bocado de alegria na vida, as pessoas acabam deprimidas. Demasiado sérias, levam tudo a sério e às vezes isso não é ncessário - encolhi os ombros sabendo que isso não ia mudar nada o ponto de vista dela. Não consegui responder-lhe quando disse que eu devia ficar com eles - isso é uma ordem? - perguntei mais baixo, esperando que ela ficasse sem maquilhagem, ou lá o que é que chamavam àquilo para ver de novo o quão bonita ela era sem aquelas tretas. Aquilo era pior que as bases e as tretas que as raparigas normais usavam.

- Não estamos sempre sérios mas precisamos de ser fortes e não de nos distrair. - atirei novamente o pano para dentro de água assim que acabei de limpar a cara e voltei a dirigir-me à minha cama, sentando-me na mesma e começando a retirar a minha armadura e colocá-la perto das armas. Parei de o fazer ao ouvir a pergunta dele e levantei o olhar de maneira a olhar para o Adam - É o que queres. - respondi simplesmente antes de continuar o que estava a fazer segundos atrás. Se haviam mais pessoas como ele aquela é que era a gente dele. Ele nunca tinha querido estar aqui e aqui estava em perigo por isso devia ir para um sítio onde estivesse a salvo e com iguais.

-Mas... - parei de falar e suspirei, não havia nada na sua cultura que a pudesse contradizer, talvez mais tarde, quando ela entendesse tudo o que eu queria dizer, eu conseguisse falar com ela sobre isso. Ou talvez tivesse que ir embora antes disso. Eu estava tão dividido e nem percebia porquê. Olhei para a sua armadura, que nem sabia como era feita, e mordisquei o interior da minha bochecha - mas assim não te podia ver - respondi-lhe - e eu gosto de ti.

Sentia-me muito mais leve sem todo aquele peso, apenas com as minhas roupas simples. Fisicamente porque interiormente sentia novamente a minha barriga a doer de nervosismo que eu não conseguia perceber ao que se devia. Levantei novamente o olhar para o Adam ao ouvi-lo dizer que se fosse com os outros como ele não me veria - Depois arranjas uma namorada. - encolhi os ombros usando a palavra que na língua dele significava amante - E não te lembras de mim. - também gostava dele, tinha-o salvo várias vezes e estava quase sempre com ele à um ano mas não podia nem ia dizer de volta. Eu não podia gostar de outras pessoas, tinha de gostar daquele com quem ia casar quando liderasse a tribo e gostar de alguém que não era da nossa família nem era como nós era uma fraqueza, apesar de eu não me importar com isso - Eu também. - acabei por dizer baixo e na minha língua numa tentativa de que ele não ouvisse ou não percebesse - Dorme. - disse mais alto e no meu tom normal - Amanhã vou ensinar-te a lutar tens de descansar.

Depois de um ano eu ainda ficava admirado com a diferença que era vê-la com o equipamento e maquilhada e vê-la sem nada. Ela quase parecia frágil, aquelas raparigas que nós olhamos e só queremos proteger mas, neste caso, quem estava a ser protegido era eu, por ela. Acho que uma das coisas boas de ir aprender a lutar era mesmo sentir algum orgulho por me saber defender deles sozinho e não precisar de uma rapariga a fazê-lo por mim. Não era machismo, era orgulho. - As coisas não funcionam assim - revirei os olhos, mas não quis dizer mais nada, ela não entendia. Se fosse ao contrário, ela ia a correr ter com alguém do tipo dela. Tirei a camisola e as calças e tapei-me com uma manta que tinha, não desviando o olhar dela, eu parecia um perseguidor, mas só estava a tentar perceber as palavras que ela tinha dito e que não se igualavam com nenhum que já tenha ouvido. - Dorme bem - desejei com um suspiro, virando-me de costas para conseguir adormecer, o que achava impossível depois do dia de hoje.

Eu sabia que as coisas não eram tão simples assim mas também sabia que o Adam nunca tinha querido ficar aqui connosco e que tinha ficado entusiasmado com o pensamento de haver mais pessoas como ele. E claro, se ele fosse ter com essas pessoas ia acabar por se esquecer de nós e de mim. Com o tempo e quando conhecesse alguém que fosse como ele. Não gostava da sensação estranha que tinha sempre que pensava nestas coisas, porque não a percebia e porque não gostava de me sentir assim. Também não gostava de pensar no Adam a ir embora porque tinha-me habituado à companhia dele, a tê-lo à minha volta mesmo quando isso me irritava. Deitei-me e tapei-me, olhando para ele pelo canto do olho mas desviando o olhar assim que se começou a despir, virando-me de lado de costas para ele - Tu também. - disse de volta antes de fechar os olhos e me deixar adormecer.

Ainda despertei algumas vezes quando estava quase a adormecer, ou o meu corpo estremecia ou eu ouvia barulhos esquisitos, mas ao fim de algumas horas o cansaço apoderou-se de mim e finalmente adormeci. Não foi sol de longa dura porque quando acordei ainda ninguém estava levantado, pelo menos, que se ouvisse. Sentei-me na cama, esfregando os olhos e espreitei para a rua, estava a começar a amanhecer.

Sempre tinha tido sono leve até porque não me podia dar ao luxo de não prestar atenção a tudo, mesmo quando estava a dormir, era a diferença entre viver ou morrer em muitos casos. Apoiei-me nos cotovelos e juntei as sobrancelhas ao ver o Adam já em pé à porta da cabana - O que é que estás a fazer? - perguntei enquanto esfregava os olhos e acabava mesmo por me sentar.

O fumo continuava, mas não parecia tão cinzento, não sabia se os outros já tinha tido curiosidade ou não, mas esperava que eu e Freya fossemos os únicos a ter reparado. Pelo menos, até sabermos o que era. Virei-me para trás, com o coração aos saltos no meu peito como se tivesse sido apanhado a fazer algo que não devesse - os dias estão maiores, estava a ver se já era de dia - voltei a sentar-me na cama.

Segui o Adam com o olhar enquanto ele voltava para a cama e levantei-me da mesma, olhando-o de sobrancelhas juntas - O que é que estás a fazer? Vamos treinar. - disse enquanto me baixava para apanhar todas as minhas coisas e me preparar como de costume - Já não queres aprender? - perguntei ajeitando o meu cabelo.

Fiz uma careta com a sua pergunta. Estiquei-me até às minhas calças revirando os olhos - estou a vestir-me. - resmunguei. O meu humor matinal não era muito bom quando não dormia quase nada. - Isso nunca foi algo que eu quis por opção minha - comentei levantando-me para puxar as calças - mas se tem que ser - encolhi os ombros, esfregando a cara com as mãos.

- Despacha-te. - disse saindo da cabana para que ele acabasse de se vestir e ficasse pronto. Estava a amanhecer e por ainda ser cedo havia muita pouca gente fora das suas cabanas, apenas aqueles cujos trabalhos começavam a esta hora. O meu olhar parou na nuvem escura que ainda era visível no céu apesar de não ter a mesma intensidade do dia anterior. Se houvesse mais pessoas como ele o Adam não tinha de aprender a lutar porque tinha de ser, porque precisava de se saber defender sem mim. Estes pensamentos continuavam a martelar na minha cabeça, deixando-me sem qualquer vontade de saber o que se passava no outro lado apesar da minha grande curiosidade - Anda lá. - disse por cima do meu ombro em direção à cabana onde ele ainda se encontrava.

Levantei uma sobrancelha - eu já estou aqui - comentei atrás dela quando resmungou para irmos. Roubei um pão quando passámos pela "padaria", sim eu sei, eles sabem fazer pão. Bem, é diferente, mas sabe a pão e é melhor do que alguns que comprava no supermercado. Dei uma dentada e estendi-lhe um bocado na sua direção - queres? - perguntei enquanto a seguia.

Guardei novamente a espada e comecei a caminhar atrás do Adam, de volta para o acampamento em direção à cabana que partilhávamos - O que é que queres fazer a seguir? - perguntei depois de entrarmos e dirigi-me logo ao local onde se encontravam as minhas coisas de higiene apesar de para cortar o cabelo ao Adam não precisar de muito mais para além da minha faca.

Sentei-me na minha cama assim que chegámos e virei-me para Freya, sem grande humor e sem me apetecer falar muito, o que não era usual. Apenas encolhi os ombros olhando para as minhas mãos que doíam por ter agarrado aquela espada durante tanto tempo - eu podia só dormir - murmurei - estou cansado - levantei o olhar na sua direção - mas se tiveres alguma coisa para fazer eu posso ficar aqui, não quero atrapalhar mais.

Agarrei nalguns bocados de tecido para colocar em cima da cama dele e para onde ia deitar o cabelo cortado para depois se deitar fora. Olhei para o Adam que estava bastante calado e quieto, coisa que não era nada dele mas que eu tinha a certeza que sabia do porquê e abanei a cabeça enquanto tratava de tudo - Podes descansar. - não tinha nada para fazer mas também não conseguia estar ali, deitar-me e ficar imenso tempo a pensar em tudo o que tinha acontecido ontem e hoje, precisava de apanhar ar e de estar sozinha e era o que ia fazer - Não te mexas muito ou ainda ficas sem um olho. - disse ao começar a cortar-lhe o cabelo com a minha faca.

Acabei por me rir com o seu comentário, mas fiquei bastante quieto - aposto que já te apeteceu fazer pior - brinquei olhando de lado para o cabelo que ela estava a cortar, a cada segundo até parecia que ficava com a cabeça mais leve. Mordisquei o lábio inferior quando voltámos ao silêncio e levantei o olhar para ela - posso tirar-te a maquilhagem? - perguntei sem me lembrar se lhe tinha ensinado aquela palavra.

- Não. Porque é que dizes isso? - perguntei de sobrancelhas juntas mas sem parar o que estava a fazer. Eu nunca tinha sido boa a ter paciência com as pessoas ou a gostar de ter alguém sempre atrás de mim mas era impossível dizer que não gostava do Adam depois de já termos passado tanto tempo juntos e mesmo quando eu não o conhecia, quando o tinha encontrado na praia, tinha-o querido proteger. Continuei a cortar-lhe o cabelo com o máximo de cuidado para cortar apenas isso mesmo e fiquei alguns segundos a pensar o que é que maquilhagem queria dizer até que me pareceu bastante lógico que o que ele me queria tirar eram as tintas da cara - Está bem.

Encolhi os ombros - queres dizer que nem quando todos começaram a duvidar de ti por minha causa, te apeteceu mudar de ideias? - perguntei. Não sabia mesmo o que é que lhe tinha passado pela cabeça na altura. Eu não a compreendia e ela também não me compreendia a mim, só ao fim de alguns meses é que finalmente lhe tinha conseguido ensinar alguma coisa e ela a mim. Sorri quando disse que podia mas tive que ficar quieto enquanto ela me cortava o cabelo, antes que ela me furasse o pescoço.

- Nunca me apeteceu mudar de ideias. - respondi bastante seriamente à sua pergunta - Se eu te quisesse ver morto tinha-te matado naquele dia na praia mas em vez disso trouxe-te para aqui e cuidei de ti. - guardei a faca no cinto quando acabei e levei os meus dedos ao cabelo do Adam de maneira a sacudir o mesmo e fazer com que algum dos que já estavam cortados mas ainda ali estavam caíssem para o pano em cima da cama - E se te quisesse ver morto tinha deixado que te matassem das várias vezes que tentaram. - acrescentei agarrando no pano que tinha os cabelos dele e indo sacudir o mesmo lá fora.

Depois dela se afastar passei os dedos pelo meu cabelo mais curto e sorri ligeiramente face ao que ela dizia. Eu sabia que ela estava do meu lado mas, no início cheguei mesmo a pensar que ela me ia matar por causa dos outros. Afinal, ela era a futura líder, ela não podia dar-se ao luxo que os seus seguidores a achassem fraca por minha causa. - Obrigado - murmurei quando ela voltou e levantei-me agarrando num pano onde tinha molhado na taça ao lado da sua cama - posso? - perguntei aproximando-me dela.

Atirei o pano agora vazio para o seu canto do costume e encolhi os ombros - Não quero que agradeças. - caminhei até à cama dele e acabei por me sentar na mesma, de frente para ele enquanto me deixava estar bastante direita. Olhei para o pano que ele tinha na mão antes de levantar o olhar para a cara dele e assentir com a cabeça - Podes.

Virei-me para ela esticando calmamente o pano na sua direção e, com a mão livre, agarrei-lhe na bochecha, para o fazer gentilmente e não à bruta, como a minha mãe dizia que eu era. Comecei a tirar-lhe aquele preto que não condizia nada com ela e sorri assim que ficou com um aspecto mais normal e simples. - tu ficas lindas, assim.